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Foto do escritorLunde Braghini

Mandarim, inglês e abstração


Em 1914, quem podia ter noção de que no imenso conflito que se iniciava estava em jogo a substituição de um poder imperialista decadente, grão-bretão (um império onde o sol nunca se punha), por um poder ascendente, estadunidense? E quanto do pano de fundo da crise presente não está associado à grande disputa entre o poder ascendente chinês e o poder descendente estadunidense?

Deve-se a uma jornalista e dramaturga, Camila Appel, socializar entre nós, numa coluna do blog Morte sem Tabu, a ideia de que o móvel da eleição de Donald Trump era o luto de um mundo que morria. Sem me lembrar dos termos de sua análise, fundada em livros de lá, dou de barato que o “nacionalismo” de Trump é a antítese, pós-hegemônica, da ideia de que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o mundo”.

Eu não me lembrei da chegada dos chineses quando vi A Chegada, de Denis Villeneuve. Mas já há algum tempo falava na cena de O Som ao Redor – filme de Kleber Mendonça Filho que para mim começa onde e quando termina o Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho –, na qual os filhos de uma família de classe média pernambucana aprendem mandarim.

Acontece que o inglês é a língua na qual os chineses realmente se comunicam com o mundo – segundo um presidente uruguaio – e na qual se pode ler o China Daily. Esse jornal semanal vendido na Banca da Maria, na plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto, não é vendido sempre para mim, só quando meu inglês defensivo alça voo de galinha.

Como a família pernambucana do filme de Kleber, minha mãe e meu pai – primeiro operário padrão de Furnas, na hidrelétrica de Funil, no Rio Paraíba do Sul – preocuparam-se, em 1977, em me matricular num curso de inglês, língua na qual hoje sou analfabeto invertido, apto a ler, mas não a falar e nem a ouvir sem socorro amoroso de Ane, que me diz o que as pessoas estão cantando, coisa que me amplia critérios de leitura.

Abri até um processo judicial interno para entender por que não aprendi inglês. Depois da denúncia, da fase de instrução e da oitiva de meu próprio testemunho, cheguei à conclusão de que minha falta de interesse no idioma tinha a ver com minha aversão ao imperialismo que associo a esse latim não latino.

Falo-o com admiração perante a capacidade imperialista de arregimentar os talentos e as forças produtivas de todo o mundo – da arte à ciência –, dando suporte a gente que é referência à direita e à esquerda, como Hannah Arendt, Gregory Bateson, Norbert Wiener ou Noam Chomsky.

À Ada Natal Rodrigues, tão generosa e insurgente, devo um modelo ético e uma privilegiada iniciação a Chomsky, na Universidade Federal de São Carlos. Mas só muito mais tarde, e numa tarde de chácara, ouvindo conversa entre Péricles Luiz Cunha e Edson Lopes Cardoso, ambos egressos do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia nos anos 1960, consolidei visão mais clara da vinculação entre o projeto global do MIT de tradução automática de línguas e o projeto imperialista dos EUA.

Graças a Chomsky e a gramática gerativa, temos coisas como o Google Translate, que me ajuda a ler partes difíceis da notícia do Daily News – “Artificcialy inteligent painters invent new styles of art”, 29 de junho de 2017 – compartilhada por Nathália Kneipp Sena, no Facebook.

O relato é sobre sistemas de inteligência artificial que simulam a criação de uma obra de arte, a respeitar a tradição da pintura e a ao mesmo tempo subvertendo-a, de modo a criar algo novo, mas não supreendentemente novo a ponto de desagradar ou não ser aceito como arte.

Lembro que uma das visões fundantes da Inteligência Artificial como área de pesquisa a concebeu como um “jogo de imitação”, em artigo célebre de Alan Turing. A ideia é de que o computador seja capaz de produzir – usando processos próprios às máquinas – resultados que os seres humanos costumam atribuir ao pensamento e aos processos mentais, como um poema, uma obra de arte ou a tradução de uma notícia.

Não preciso ser um Agenor Soares de Moura para acusar trechos equívocos na tradução da notícia feita pelo Google Translate – irônica e involuntariamente imitadores de equívocos humanos –, e acho uma graça pensar que traduzir “the human history behind an artwork is often an important part of what endears us to it” por “a história humana por trás de uma obra de arte é uma parte importante do que nos atrapalha” deve ter tido seu peso no anunciado fechamento do curso de História do UniCeub, mais um capítulo para a derrota política, econômica e social dos professores e da educação, tão drasticamente caracterizada por Denise Macedo em coluna aqui na Casa da Mão.

Fato é que, crônica passada, me gabava de como o grito dos companheiros de Machado de Assis me tirara do torpor diante de um painel de Jonas Melo, na Gráfica do Senado. Desde então, me animara a conversar com cinco telas de Rogério Mariano, que ficaram expostas até o fim de junho no Espaço Cultural Câmara dos Deputados.

Caso houvesse já lido o artigo do Daily News, talvez as provocasse para saber se Rogério Mariano era gente ou software, mas telas abstratas são menos de falar que de calar – e nem quando se mostram se dizem fácil. Caladas, elas me ouviram divisar alguns traços da aventura de Rogério Mariano nesta coisa que parece tão óbvia: trabalhar uma materialidade que não remeta a outra realidade que não a sua própria, sem perder o estatuto de aventura humana válida no campo da arte.

Cada tela exposta é nomeada igualmente – “Abstrato” –, só diferindo em número romano que, por suposto, as organiza numa ordem de produção. Independente de ser parte de série, cada quadro é evidentemente ponto de chegada de uma história própria, com seu começo, meio e fim – seu processo de produção. Isso não implica que o artista precisa ter um plano prévio de voo, com destino certo, mas certamente uma plataforma, uma base a partir da qual decolar.

Impactados/as de (e por) alguma forma, somos levados a imaginar, intuir, como se produziram as seções do quadro e os padrões que as delimitam – mas não as delineiam por uma disciplina de linha, de desenho – a partir da composição de campos e áreas de cor.

Imagino, leigo, operações sucessivas acionadas na produção, por exemplo, da tela intermediária em exposição – tratamento da tela, produção de um fundo preto, criação de seção horizontal central cinza, subdivisão de seção azul, inserção de uma faixa horizontal ocre na parte superior, raspagem no sentido vertical, raspagem profunda para criar sulcos preenchidos com o derramamento de camada de tinta vermelha –, até o artista reconhecer que mais mexer seria estragá-la.

Por paradoxal, no caso desta tela de Rogério Mariano, estragá-la seria interferir numa obra que, para mim, figura – sem prejuízo do abstrato, mas por meio dele – o estrago suave, inexorável e desorganizador do tempo, que a física denominou entropia, evocado em ranhuras e texturas e desgastes aí representados, mas que um dia hão de (se não houver intervenção corretiva, negadora da entropia, dita neguentrópica) atingir a tela de verdade.

Que o vermelho sangrado evoque sangue derramado – corrido, corrente ou a correr –, isso me faz lembrar que entropia/neguentropia são termos contemporâneos – “decimonônicos”, por espanholismo – de revolução/contrarrevolução, sendo que se deve à Arno Mayer, em Dinâmica da Contrarrevolução na Europa (1873-1956), chamar a atenção para a matriz do conflito político moderno, apanhado na chave europeia, que não abre todas as portas.

Isso tudo ouviram – estupefatas e indiferentes – as lacônicas telas de Rogério Mariano, até eu – perdido no tempo e devolvido à história – encontrar meu ponto.


Lunde Braghini é jornalista, mestre em comunicação (UnB),

ex-professor do Centro Universitário de Brasília (UniCeub)

e da Universidade Católica de Brasília (UCB),

diz-se inimigo do racismo, da homofobia, do sexismo,

do racismo de novo, e do capitalismo.

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